A Polícia Militar do Rio de Janeiro (PM-RJ) excluiu um candidato (às suas fileiras) porque tinha tatuagem. O STF (no Recurso Extraordinário com Agravo 665.418, relatado pelo ministro Ayres Britto) entende que exigência desse tipo não encontra base legal.
Sem lei, essas restrições discriminatórias não podem prosperar. O policial precisa ser bonito? Assim começa a matéria publicada no Valor Econômico de 26.03.13, página E1, que enfoca o caso de um candidato a policial militar de Minas Gerais que tinha acne.
O Tribunal de Justiça de MG (desembargadora Moreira Diniz) reconheceu seu direito de participar do certame (não é preciso ser bonito para ser policial). Há poucos dias a Polícia civil da Bahia expediu edital onde exigia “pente fino ginecológico” nas mulheres, ou prova da sua virgindade (prontamente o governo da BA revogou o absurdo).
Há restrições razoáveis, ou seja, que contam com bom senso. Por exemplo: um candidato com “amputação das duas pernas” não poderia ser bombeiro. Isso resulta ser razoável. Mas para ser médico de emergência no serviço público (caso concreto de São José dos Campos), como bem divulgou o Valor Econômico na matéria citada, não há impedimento (como reconheceu o TJ-SP, desembargador Wanderley Federighi).
Inquérito policial instaurado e logo em seguida arquivado não pode servir de base para a rejeição do candidato (caso decidido pelo TJ-PR) O Valor Econômico ainda cita o caso do candidato com problema dentário, que não pode ser impedido de ingressar na polícia militar TJ-SP).
Inclusive o Poder Judiciário já reprovou candidatos por razões médicas. Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, hoje desembargador na Justiça do Trabalho, foi reprovado em São Paulo para a magistratura trabalhista por ser cego (Valor Econômico citado).
O Estado de Direito tem por eixo os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da legalidade, do direito ao trabalho, do direito à vida e da razoabilidade. Todos os editais de concursos que fazem exigências ou restrições não contidas na lei e desarrazoadas devem ser censurados (glosados) pelo Poder Judiciário.
A jurisprudência do STF (veja o Recurso Extraordinário com Agravo 665.418) é no sentido de que apenas por meio de lei é possível impor restrição ao acesso a cargos públicos. Vêm preponderando as garantias da legalidade e da razoabilidade (ou seja: o Estado de Direito).
A jurisprudência é fonte fundamental do Direito. O controle de legalidade e de razoabilidade tem fundamento constitucional. Nenhum Estado de Direito se compatibiliza com o excesso, com aquilo que é desarrazoado. Sobretudo a Justiça tem que ser justa (equilibrada, sensata, razoável).
O princípio da razoabilidade é um dos princípios mais refinados do Estado de Direito do século XXI. O juiz é o semáforo do sistema jurídico: para todo excesso, ele tem que sinalizar o vermelho. Do contrário, converte-se o Estado de Direito em Estado de Exceção, com chance de se chegar ao Estado de Polícia.
Recurso Extraordinário com Agravo 665.418
DECISÃO: vistos, etc.
Trata-se de agravo contra decisão
obstativa de recurso extraordinário, este manejado com suporte na alínea “a” do
inciso III do art. 102 da Constituição Republicana, contra acórdão do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão assim fundamentado, na parte
que interessa ao deslinde da causa (fls. 308/309):
“O edital é expresso ao prever limitações a candidatos que possuam
tatuagens (fls. 34, cláusula 11, item 11.2, ‘d’).
Segundo
consta do edital, será considerado reprovado o candidato que apresentar tatuagem
nas mãos,
braços,
antebraços,
pescoço,
cabeça,
face e membros inferiores. Outrossim, há vedação a tatuagens, em qualquer local do corpo, que afetem a
honra pessoal, o pundonor policial militar, o decoro exigido aos integrantes da
Polícia
Militar, discriminatórias, preconceituosas, atentatórias à moral, aos bons costumes, à religião ou, ainda, que cultuem violência ou façam algum tipo de apologia ao
crime.
Tal
exigência
não
é
discriminatória, nem vai de encontro aos princípios da isonomia e
razoabilidade. Isso porque não há vedação geral à tatuagem. As restrições existentes visam à seriedade da instituição policial militar.
Dessa
forma, diante da ausência de ilegalidade no ato administrativo, sendo este razoável e estando devidamente
motivado, a interferência do Poder Judiciário violaria a separação dos poderes, o que é vedado pela Constituição da República.
Por
tais motivos, voto no sentido de dar provimento ao recurso.”
2. Pois bem, a parte recorrente aponta
violação aos incisos X e LIV do art. 5° e ao inciso IX do art. 93 da Magna
Carta de 1988, bem como aos princípios da dignidade da pessoa humana, da
igualdade, da legalidade, do direito ao trabalho, do direito à vida e da
razoabilidade.
3. Tenho que a insurgência merece
acolhida. É que o aresto impugnado destoa da jurisprudência desta nossa Casa de
Justiça no sentido de que todo requisito que restrinja o acesso a cargos
públicos é de estar contido em lei. Lei em sentido formal.
4. Precedentes: AIs 662.320-AgR, da
relatoria do ministro Eros Grau; e 734.587, da relatoria do ministro Ricardo
Lewandowski; bem como REs 451.938-AgR e 398.567-AgR, da relatoria do ministro
Eros Grau, este último assim ementado:
“AGRAVO
REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONCURSO PÚLICO. PROVA DE APTIDÃO FÍSICA.
PREVISÃO LEGAL. INEXISTÊNCIA.
O
edital do concurso não pode limitar o que a lei não restringiu.
Agravo
regimental a que se nega provimento.”
5. Calha ressaltar que, ao apreciar
caso análogo (em que se pretendia
excluir do concurso para o preenchimento do cargo de policial militar candidato
também portador de tatuagem em local visível do corpo), a ministra Ellen Gracie
conheceu o agravo de instrumento para, desde logo, dar provimento ao apelo
extremo, ante o desrespeito ao princípio da legalidade. Refiro-me ao AI
811.752. Leia-se do julgado:
“[...]
O acórdão recorrido divergiu do entendimento fixado por este
Tribunal ao não observar o postulado da reserva legal, permitindo limitação prevista apenas em resolução. É o que se depreende do trecho
abaixo transcrito:
‘In
casu, o respectivo edital estabeleceu, com base na Resolução nº 3.692/02, que a
existência
de tatuagem em local visível
constituiria fator de contra-indicação para ingresso na Entidade. Com
efeito, com fundamento no princípio
da legalidade e do caráter
vinculante da regra inserida no edital do concurso, o militar submete-se a Legislação especial, costumes rígidos e disciplina
marcante que lhe é
imposta pela Corporação,
razão
por que a existência
de tatuagem constitui fator incapacitante para ingresso na carreira’ (fl. 104).
4. Ante o exposto, com fundamento no art. 544, § 4º, do Código de Processo Civil, conheço do agravo e, desde logo, dou provimento ao recurso extraordinário. Determino a inversão dos ônus da sucumbência, ressalvada a hipótese de concessão da justiça gratuita.”
Ante o exposto, e frente ao § 1º-A do
art. 557 do CPC, dou provimento ao recurso. Invertidos os ônus da sucumbência.
Sem condenação em honorários advocatícios (Súmula 512/STF).
Publique-se.
Brasília, 04 de abril de 2012.
Ministro AYRES
BRITTO
Relator
Fonte: Luiz Flávio Gomes/Congresaso em Foco
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