sábado, 14 de setembro de 2013

Gushiken conduziu a despedida com a dignidade com que tocou a vida

Luiz Gushiken
Na última semana Luiz Gushiken e família convidaram companheiros de sindicato, de partido e de batalhas a ir ao Hospital Sírio Libanês. Lúcido e ciente de que o fim estaria próximo, fazia o rito da despedida. Quem o visitava saía de lá com a tristeza de um adeus. E com as narrativas das lembranças inevitáveis.

Nosso Libelu é melhor que os outros. A frase que quase foi slogan de campanha de Luiz Gushiken para deputado federal, em 1986, parodiava a peça publicitária de uma marca japonesa de eletroeletrônicos. 

E se associa à história do início da militância do nosso japonês, ainda no início dos anos 1970, na tendência política inspirada nas ideias de Leon Trotsky, muito presente nas mobilizações estudantis de então. 

A campanha do japonês melhor do que os outros foi abandonada em parte por ser propriedade privada. Mas principalmente porque Gushiken optou por usar “Um voto de classe”.

Muitos libelus com origem no movimento estudantil foram para os sindicatos, como dos bancários de São Paulo, e outros para a militância partidária na fundação do PT e da CUT, entre 1980 e 1983. 

A Liberdade e Luta era a principal tendência entre os jovens, mas no mundo sindical o espectro partidário era mais amplo, incluindo egressos do PCB e de organizações como Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP), Ação Popular (AP), Aliança Libertadora Nacional (ALN).

Havia naquele período uma conversão da luta de guerrilha urbana e rural para os movimentos de massa, as greves e as mobilizações estudantis. A direção da LL chega a cunhar Lula como pelego e traidor, o que leva um grupo considerável a deixar a tendência e ingressar no PT. 

Um dos artífices dessa migração foi Luiz Gushiken, que se rende à luta dentro das assembleias de trabalhadores e à democracia de base, sem o vanguardismo da corrente.

Um ano antes da fundação do PT, a oposição bancária tendo Augusto Campos na presidência da chapa bate a turma que estava na direção do sindicato e empreende uma verdadeira democracia de base. E ainda ajuda na construção do PT e da CUT. 

Esse grupo eclético se consolida dentro do sindicato e dele sai o desenho da estrutura da central dos trabalhadores. Assim, Gushiken e os demais da Libelu seriam decisivos na formação, em meados dos anos 1980, da tendência Articulação, que nasceu com a assinatura de 113 integrantes, dentro dela o pessoal de O Trabalho, um dos nomes com que era conhecida a Libelu, e título do jornal da corrente.

Surge o China

Quando a repressão da ditadura foi para o ABC na tentativa de sufocar as greves e a liderança de Lula, os bancários de São Paulo puxaram um amplo leque de apoio, com a presença constante das lideranças, a divulgação do movimento, o incentivo a coleta de fundos. A amizade de Lula e Gushiken se estreita e o bancário recebe o apelido de China.

Aquela juventude aguerrida procurava sua greve desde 1979. Não era possível ser revolucionário sem a greve dos bancários. Algumas greves como Baneser, prestadora de serviços pertencente ao Banespa, e Banco do Brasil foram reprimidas e culminaram na revolta dos oficce-boys no centro da cidade e numa quase greve dos vigilantes, ambas puxadas pelos libelus do sindicato.

Mas foi na luta para que o Bradesco respeitasse o feriado bancário de 13 de junho em Osasco que o sindicato paralisou as atividades na Cidade de Deus, centro de processamento e administrativo do Bradesco naquela cidade.

Tendo como ensinamento que não existe movimento sem comunicação, o sindicato criara a Folha Bancária diária, inicialmente um “giletepress”, com recortes de notícias selecionadas da imprensa. 

Com a intervenção do Ministério do Trabalho, que dura de 1983 a 1985, aquela juventude aproveita a onda, amplia o trabalho de base e continua liderando a categoria mesmo sem a "posse" formal da entidade. Lula e os metalúrgicos retribuíram a solidariedade. 

A visão estreita de vários dirigentes de ambas as categorias impediu na ocasião um aliança que rendesse mais frutos, o que só aconteceria 20 anos depois, já com Lula presidente, e tendo esta Rede Brasil Atual como fruto.

Jornal da Tarde: o líder sai do anonimato e não se ilude

Enfim, vem a greve. Ao consolidarem a liderança e reelegerem a diretoria no Sindicato dos Bancários, Augusto Campos e Luiz Gushiken rediscutem também alterações na estrutura corporativa das entidades sindicais, incluindo as federações e confederação. 

Com muita habilidade, trabalham a crítica e a independência, e formam um comando único que leva a categoria a três grandes greves em 1985, 1986 e 1987.

Gushiken passa a vestir gravata para ficar com a cara dos bancários. Liberdade para ele não era mais uma calça velha, azul, desbotada e camiseta e sandálias, mas a organização incansável de uma enorme massa de trabalhadores. Em 1985, os bancos param em todo o Brasil na esteira da luta pelas Diretas Já. Em 1986, Gushiken passa pela grande prova de fogo da liderança. Apesar da greve forte, a negociação saíra menor que o esperado pela base. Mesmo com uma candidatura para deputado constituinte e a poucos meses do pleito, o China defendeu a suspensão da greve e tomou uma boa vaia em assembleia na Praça da Sé, para desespero de sua mulher, Bete, ao pé do palanque.

Na greve de 1985, o Jornal da Tarde, em seus melhores tempos de reportagens e capas criativas, dá uma página inteira. Consolida-se o China, que não se ilude: “Não podemos tratar a imprensa como maniqueísta, é do bem quando fala bem da gente e do mal quando nos critica. Devemos ter a nossa própria mídia”.

De Constituinte a estadista

Para a Constituinte vão Gushiken, Lula, Genoino, Florestan Fernandes e outros lutadores. A Constituição cidadã, prestes a completar 25 anos em outubro, consolida o retorno à democracia. Gushiken se notabiliza e emplaca o tempo especial de aposentadoria das mulheres em 25 anos – explicado pela expectativa de vida estatisticamente menor e a dupla jornada – e a agenda sobre o sistema financeiro. 

Muito dessa constituição até hoje não foi regulamentada, como é o caso dos artigos sobre comunicação e o 192, que dispõe sobre o papel do sistema financeiro.

Inquieto, exigente e articulador, Gushiken torna-se o chefe de campanha de Lula para a primeira eleição direta em 1989, no enfrentamento com Fernando Collor, ao suceder o companheiro na presidência do PT. 

Eram tempos de rifas, bingos, contribuições e de rodar o estado no Volkswagen Brasília e num Chevrolet Opala – que acabou rifado, e muita gente ainda o procura; pode ser que seu atual proprietário não tenha noção de possui um ícone dessa história. 

Vem a luta aberta pelo impeachment de Collor, a cassação, o governo Itamar, o Plano Real e FHC.

Gushiken, com origem no Banespa, se notabilizou pela luta em torno da defesa da Previ, o fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil – era o período das privatizações e o fundo foi usado pelo governo FHC para encorpar consórcios de corporações estrangeiras em leilões do setor siderúrgico, elétrico e das teles. 

E o presidente do sindicato, Ricardo Berzoini, do BB, destacou-se nas mobilizações contra a privatização do banco estadual – um ataque que começou em 1º de janeiro de 1995 e sacramentou-se em 20 de novembro de 2000. Até hoje há que pense que o China era do BB e Berzoini, do Banespa.

E ambos trilham o caminho dos fundos de aposentadorias complementares, vendo-o como um setor estratégico para os trabalhadores e ao mesmo tempo travando uma luta dura contra a ingerência política dos governos e bancos privados no segmento. Gushiken reúne um grupo de especialistas e funda uma empresa de consultoria para essa área. 

Antes, sempre alertara: “Esses caras aí não estão para brincadeira, vão privatizar tudo”, referindo-se ao governador Mario Covas e a Yoshiaki Nakano, secretário da Fazenda no Estado, e aos nomes do "mercado" encastelados no governo federal, como André Lara Rezende, Pedro Malan, Gustavo Franco, Elena Landau, os irmãos Mendonça de Barros. Todos, como previa o japonês, dispostos a ir ao limite da irresponsabilidade.

Em disputa, o poder e a honra

A eleição de Lula tem em Gushiken seu fiel escudeiro. Como chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência, responsável pelas verbas publicitárias do governo e das estatais, Gushiken iniciou um processo de democratização com a ampliação dos veículos que receberiam anúncios. E indicou o deputado Berzoini para o Ministério da Previdência.

Travou luta sem trégua contra os bancos que controlavam a Secretaria de Previdência Complementar e com os que pelejavam nos fundos de pensão pelo controle de setores privatizados, como as teles, em particular com o dono do Opportunity, Daniel Dantas. Passou a viver sob ameaças, sua casa em Indaiatuba (SP) teve de reforçar vigilância.

Recebeu do sociólogo Francisco Oliveira a crítica de ter fundado o “neopetismo”, como se os trabalhadores tivessem de ajudar a esquerda a chegar ao poder, mas permanecer em seus “devidos lugares”, suas bases sindicais, deixando os postos de poder para os intelectuais.

Mas não era o preconceito de setores da esquerda o que preocupava. O inconformismo da imprensa elitista com o governo de Lula levou à transformação do escândalo batizado pelo “bom caráter” Roberto Jefferson de “mensalão” em oportunidade única de virar o jogo do poder. No voto e nos projetos de governo, não havia como a mídia e a oposição derrotarem Lula.

Foi um período duro para todos. E por sete anos Gushiken passou por dissabores com antigos colegas, enfrentou diversas cirurgias e teve a honra pisoteada por colunistas cuja índole se equivale à dos capatazes e capitães-do-mato – os mercenários que capturavam os rebeldes e os entregavam aos donos da Casa Grande. 

Só teve seu nome excluído do processo por total falta de provas em 2012. Aos que comemoravam, dizia: “Não posso ficar feliz se ainda estão lá inúmeros companheiros”.

Nos dias de hoje, Lula vinha falando de Gushiken com um fio de esperança de ainda vê-lo recuperar-se. Ainda esperava o retorno do companheiro para outras longas jornadas.

De fato, Gushiken prolongou sua jornada até a última fração de segundo em que pôde desfrutar a vida. Lutou com a dignidade de quem foi protagonista de uma mudança irreversível. Com a honra de um samurai.

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