A dívida de
alimentos é uma das raras hipóteses que a Constituição Federal admite prisão
por dívida.[1] Assim, nem que fosse por puro temor,
essa deveria ser a obrigação com menor índice de inadimplência. Mas quem deve,
sabe que não há nada melhor do que não pagar alimentos. E o credor sabe do
verdadeiro calvário que é a cobrança de crédito alimentar.
É tal o desencontro entre
a Lei de Alimentos e o Código de Processo Civil, quando se fala em execução de
alimentos que nem é possível dizer qual é o prazo da prisão a que se sujeita o
devedor. A Lei 5.478, que data do ano de 1968,[2] autoriza
a prisão do devedor por até sessenta dias. Já o Código de Processo Civil, que
vigora desde 1973,[3] prevê a prisão pelo prazo de
um a três meses. Por se tratar de dívida considerada civil, sob a justificativa
de o devedor precisar trabalhar para atender a encargo que deixou de pagar –
mesmo estando trabalhando –, a tendência é admitir o cumprimento da pena em
regime aberto ou até em prisão domiciliar.
Não bastasse isso, há
outro detalhe que merece ser chamado, no mínimo, de insólito. Quanto mais o
devedor deve, mais chance tem de não ir para a cadeia. A mora produz uma
alquimia: transforma os alimentos. A dívida faz com que os alimentos mudem de
natureza. Ainda que a Constituição Federal[4] reconheça
o direito à alimentação como um direito social, com o passar do tempo os
alimentos deixam de ser alimentos. Será que apodrecem?
Este não senso, não está
na lei. Mas, em face da absoluta dificuldade dos juízes de decretar a prisão do
devedor, o STJ[5] sumulou a orientação adotada pela
jurisprudência majoritária. Limitou a execução pelo rito da coação pessoal a
três prestações. Assim, quem deve mais de três meses de pensão alimentícia
simplesmente está livre da prisão, não vai para a cadeia.
Há mais. A dívida
alimentar também não gera – ou não gerava – consequências de outra ordem, como
acontece com toda e qualquer dívida. Ou seja, se alguém não paga a luz, a
energia é cortada. Caso deixe de honrar dívida perante uma instituição
financeira, se sujeita ao pagamento de multa, juros sobre juros, comissão de
permanência e toda a sorte de taxas e tarifas. Isso tudo sem contar com a
inscrição de seu nome no cadastro de devedores. E lá se vai qualquer chance de
obter crédito seja para o que for.
Felizmente a Justiça
começou a atentar a esta realidade, autorizando a inscrição do alimentante nos
cadastros da SERASA e do SPC bem como a penhora de conta vinculada ao FGTS.
Ao certo quaisquer dessas
providências são mais eficazes do que o próprio aprisionamento. Afinal, nada
justifica que o devedor armazene um crédito para quando se aposentar, atingir
70 anos ou quiser adquirir casa própria, enquanto alguém, sem condições de
prover o próprio sustenta, fica sem receber o que lhe é devido. Nessa linha a orientação
do STJ que, invocando os princípios da proporcionalidade e da dignidade da
pessoa humana, admite a possibilidade da penhora e levantamento do saldo e não
simplesmente o bloqueio de valores.
Mister realizar uma
ponderação de princípios, sobrepondo o direito do credor à resistência do
devedor. Quando a dívida é de pais para com os filhos, tal postura configura,
inclusive, crime de abandono.
Por isso a falta de
previsão legal não pode impedir que a justiça imprima mais eficácia às suas
decisões. A justificativa transborda de coragem e coerência: como é permitido o
mais, ou seja, a prisão do devedor, antes disso é possível a inscrição do seu nome
no cadastro de inadimplentes.
Esta é a nova postura do
magistrado cada vez mais comprometido com a efetividade da Justiça. Não há como
esperar pelo legislador para assegurar, a quem bate às portas do Poder
Judiciário, uma resposta que atenda ao que a Constituição Federal promete a
todos: a inviolabilidade do direito à vida.
[1] CF, art. 5º, LXVII: não haverá prisão civil por dívida, salvo a do
responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentícia e a do depositário infiel;
[2] Lei nº 5.478/68, art. 19: O juiz, para instrução da causa ou na
execução da sentença ou do acordo, poderá tomar todas as providências
necessárias para seu esclarecimento ou para o cumprimento do julgado ou do
acordo, inclusive a decretação de prisão do devedor até 60 (sessenta) dias.
[3] CPC, art. 733, § 1º: § 1o Se o
devedor não pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de
1 (um) a 3 (três) meses.
[4] CF, art. 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição.
[5] Súmula 309: O débito alimentar que autoriza a prisão
civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento
da execução e as que se vencerem no curso do processo.
Maria Berenice Dias
Advogada - Vice Presidente Nacional do IBDFAM
Fonte: Justiça em Foco.
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